sábado, 10 de novembro de 2012

O uso dos Salmos na devoção cristã

Por Franklin Ferreira

Durante quase dois mil anos, os Salmos foram centrais para a devoção da igreja cristã, ensinando os fiéis a orar, em resposta ao Deus que se revela, uma confissão e glorificação ao Deus trino, criador, redentor e restaurador. Deste modo, “quando abraçamos Salmos, juntamo-nos a um amplo grupo de pessoas que por quase trinta séculos tem baseado seus louvores e orações nessas palavras antigas. Reis e camponeses, profetas e sacerdotes, apóstolos e mártires, monges e reformadores, executivos e donas de casa, professores e cantores populares – para todos esses e para uma multidão de outros, Salmos tem sido vida e respiração espiritual”.1 Como Eugene Peterson escreve, “não existe outro lugar em que se possa enxergar de forma tão detalhada e profunda a dimensão humana da história bíblica como nos Salmos. A pessoa em oração reagia à totalidade da presença de Deus, partindo da condição humana, concreta e detalhada”. Só que, por volta da primeira metade do século dezenove, com o aparecimento dos métodos críticos de estudos bíblicos, os salmos perderam sua centralidade na devoção cristã. Deixaram de ser a escola de oração que dava forma à oração dos fiéis, em sua resposta ao Deus que se revela. Passaram a ser vistos, na avaliação de Peterson, como a piedade deteriorada de uma religião desgastada.2
1. Os Salmos e a oração
A escola que Israel e a Igreja recorreram para aprender a orar foram os Salmos, que, junto com Isaías, foi o livro mais citado por Jesus e os apóstolos no Novo Testamento, inclusive como apoio de doutrinas centrais da fé cristã. Para os primeiros cristãos, a ordem era: “Enchei-vos do Espírito, falando entre vós com salmos” (Ef 5.18-19). Logo, estes, “como seus antepassados judeus, ouviram a palavra de Deus nesses hinos, queixas e instruções e fizeram deles o fundamento da vida e do culto”.3 
Os salmos eram declarações de relacionamento entre o povo e seu Senhor. Pressupunham a aliança entre ambos e as implicações de provisão, proteção e preservação dessa aliança. Seus cânticos de adoração, confissões de pecado, protestos de inocência, queixas de sofrimento, pedidos de livramento, garantias de ser ouvido, petições antes das batalhas e ações de graças depois delas são, todas expressões do relacionamento ímpar que tinham com o único Deus verdadeiro. Temor e intimidade combinavam-se no entendimento que os israelitas tinham desse relacionamento. Eles temiam o poder e a glória de Deus, sua majestade e soberania. Ao mesmo tempo protestavam diante dele, discutindo suas decisões e pedindo sua intervenção. Eles o reverenciavam como Senhor e o reconheciam como Pai.4
Na igreja primitiva e durante a reforma protestante, quando um pastor queria ensinar sua congregação sobre a oração, pregava nos Salmos. Nos séculos IV e V, Atanásio de Alexandria enfatizou que cada Salmo “está composto e é proferido pelo Espírito”, sendo o “um espelho no qual se refletem as emoções” de nossa alma, onde “podemos captar os movimentos da nossa alma e nos faz dizer como provenientes de nós mesmos, como palavras nossas, para que, trazendo à memória nossas emoções passadas, reformemos a nossa vida espiritual”.5 Ambrósio de Milão, que introduziu o canto dos salmos no culto público no Ocidente, chamou-os de “um tipo de ginásio para ser usado por todas as almas, um estádio da virtude, onde diferentes exercícios são praticados, dentre os quais se podem escolher os mais adequados treinamentos para se alcançar a coroa”.6 Agostinho de Hipona, que pregou todo o livro dos Salmos para sua congregação, chamou-os de “escola”, “espelho” e “remédio”, “cantados no mundo inteiro”.7 Quando sua última doença o derrubou, ele pediu aos seus irmãos que fixassem nas paredes de sua cela cópias em letras grandes dos salmos penitenciais (Salmos 6, 32, 38, 51, 102, 130 e 143), para que ele os lesse continuamente.
No século XVI, Martinho Lutero afirmou que o livro dos Salmos “não coloca diante de nós somente a palavra dos santos, (...) mas também nos desvenda o seu coração e o tesouro íntimo de suas almas”, onde aprendemos a “falar com seriedade em meio a todos os tipos de vendavais”, e que o saltério “faz promessa tão clara acerca da morte e ressurreição de Cristo e prefigura o seu Reino, condição e essência de toda a cristandade – e isso de tal modo que bem poderia ser chamado de uma ‘pequena Bíblia’”. Ele também afirmou: “É muito benéfico ter palavras prescritas pelo Espírito Santo, que homens piedosos podem usar em suas aflições”.8 Em seu leito de morte, ele recitava continuamente: “Nas tuas mãos, entrego o meu espírito; tu me remiste, SENHOR, Deus da verdade” (Sl 31.5). Por seu lado, João Calvino, que comentou todo o livro de Salmos, escreveu:
Tenho por costume denominar este livro – e creio não de forma incorreta – de ‘Uma anatomia de todas as partes da alma’, pois não há sequer uma emoção da qual alguém porventura tenha participado que não esteja aí representada como num espelho. Ou melhor, o Espírito Santo, aqui, extirpa da vida todas as tristezas, as dores, os temores, as dúvidas, as expectativas, as preocupações, as perplexidades, enfim, todas as emoções perturbadas com que a mente humana se agita. (...) A genuína e fervorosa oração provém, antes de tudo, de um real senso de nossa necessidade, e, em seguida, da fé nas promessas de Deus. É através de uma atenta leitura dessas composições inspiradas que os homens serão mais eficazmente despertados para a consciência de suas enfermidades, e, ao mesmo tempo, instruídos a buscar o antídoto para sua cura. Numa palavra, tudo quanto nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração, nos é ensinado neste livro.9
No século XVII, o puritano Lewis Bayly, ao recomendar o cântico dos salmos pelas famílias cristãs, afirma: “Cantem para Deus com as próprias palavras de Deus”. E o uso do saltério deveria ter este alvo: “E faça uso frequente deles, para que as pessoas possam memorizá-los mais facilmente”. Então, ele oferece a sugestão do uso dos seguintes salmos para promover a piedade em família, nos momentos de oração e devoção:
De manhã, os Salmos 3, 5, 16, 22 e 144. De noite, os Salmos 4, 127 e 141. Implorando misericórdia depois de ter cometido pecado, os Salmos 51 e 103. Na doença em períodos de dura provação, os Salmos 6, 13, 88, 90, 91, 137 e 146. Quando o crente for restaurado, os Salmos 30 e 32. No dia de santo repouso semanal, os Salmos 19, 92 e 95. Em tempos de alegria, os Salmos 80, 98, 107, 136 e 145. Antes do sermão, os Salmos 1, 12, 147 e a primeira e a quinta partes do Salmo 119. Depois do sermão, qualquer Salmo relacionado com o principal argumento do sermão. Na Ceia do Senhor, os Salmos 22, 23, 103, 111 e 116. Para inspirar consolo e tranquilidade espiritual, os Salmos 15, 19, 25, 46, 67, 112 e 116. Depois do mal praticado e da vergonha recebida, os Salmos 42, 69, 70, 140 e 145.10
Desde o princípio, a Palavra de Deus sempre vem em primeiro lugar. Nós somos chamados a responder a Palavra de Deus, com todo nosso ser. E a oração é nossa resposta à revelação de Deus nas Escrituras. Sendo assim, os Salmos são a escola onde os cristãos aprendem a orar, pois como Peterson diz, “é esta fusão de Deus nos falar (Bíblia) e nós falarmos a ele (oração) que o Espírito Santo usa para formar a vida de Cristo em nós”.11 Ou, como Ambrósio escreveu, “a Ele falamos, quando oramos, a Ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos”.12 E Bonhoeffer completa: “Portanto, se a Bíblia também contém um livro de orações, isso nos ensina que a Palavra de Deus não engloba apenas a palavra que Deus dirige a nós. Inclui também a palavra que Deus quer ouvir de nós... (...) Que graça imensurável: Deus nos diz como podemos falar e ter comunhão com Ele! E nós podemos fazê-lo orando em nome de Jesus Cristo. Os Salmos nos foram dados para aprendermos a orar em nome de Jesus Cristo”.13
Se insistirmos em aprender a orar sozinhos, sem depender dos Salmos, nossas orações serão pobres, uma repetição de frases prontas: agradecemos as refeições, arrependemo-nos de alguns pecados, suplicamos bênçãos para nossas reuniões e até pedimos orientação. Por outro lado, toda nossa vida deve estar envolvida na oração. Peterson exemplifica esse fato com o livro do profeta Jonas, que gira inteiramente em torno das relações entre Deus e o profeta.14 Essas relações se originaram por meio do chamado profético, do qual Jonas procurou fugir. Mas este personagem não é entregue a si mesmo. Na primeira parte da historia, Deus deixa que o profeta chegue ao extremo de quase perder a própria vida, somente para em seguida restaurá-lo à posição onde se encontrava antes dele tentar evitar o chamado do Senhor.
No centro da narrativa bíblica está a oração que Jonas proferiu após ser engolido por um grande peixe. Sua primeira reação ao se encontrar no ventre do peixe foi fazer uma oração (cf. Jonas 2.2-9), o que não é surpreendente, pois geralmente oramos quando estamos em situações desesperadas. Mas existe algo surpreendente na oração de Jonas. Como Peterson destaca, sua oração não é original ou espontânea: “Jonas aprendeu a orar na escola, e orava como aprendera. Sua escola eram os Salmos”. Como o mesmo autor demonstra, frase após frase a oração de Jonas está repleta de citações dos Salmos:
  • “Minha angústia” de Salmos 18.6 e 120.1.
  • “Profundo” de Salmo 18.4-5.
  • “As tuas ondas e as tuas vagas passaram por cima de mim” de Salmo 42.7.
  • “De diante dos teus olhos” de Salmo 139.7.
  • “Teu santo templo” de Salmo 5.7.
  • “As águas me cercaram até à alma” de Salmo 69.2.
  • “Da sepultura da minha vida” de Salmo 30.3.
  • “Dentro de mim, desfalecia a minha alma” de Salmo 142.3.
  • “No teu santo templo” de Salmo 18.6.
  • “Ao Senhor pertence a salvação” de Salmo 3.8.
  • Cada palavra é derivada do livro dos Salmos. Geralmente achamos que a oração é genuína quando é espontânea, mas a oração de Jonas, numa condição extremamente difícil, é uma oração aprendida, sem originalidade alguma.
     Peterson prossegue: “Ter palavras prontas para a oração não é apenas uma questão de vocabulário. Nos últimos cem anos, teólogos deram atenção cuidadosa à forma particular que os salmos têm (crítica da forma) e os dividiram em duas grandes categorias: lamentações e ações de graças. As categorias correspondem às duas grandes condições em que nós nos encontramos: angústia e bem-estar”. De acordo com as circunstâncias e em como nos sentimos, lamentamos ou agradecemos.15 “Os salmos refletem muitas e diversas reações à vida: alegria, tristeza, gratidão e tranquila meditação, para nomear apenas algumas. O adorador israelita tinha uma oração pronta para todas as vicissitudes da vida. (...) Os salmos são orações cantadas para Deus, logo, eles chegam a nós como palavras da congregação dirigidas a Deus, em vez de a Palavra de Deus dirigida ao povo de Israel”.16
    Como Peterson enfatiza, “a forma mais comum da oração nos Salmos é o lamento”. Isso não deveria nos surpreender, já que essa é nossa condição mais comum. “Temos muitas dificuldades, então oramos muito em forma de lamento. Um estudioso da escola de oração dos Salmos conheceria essa forma melhor que todas, pelo simples fato da repetição”. Jonas se encontrava na pior situação imaginável. Seria natural que ele lamentasse. Mas ocorre o contrário – ele profere um salmo de louvor. Por isso Peterson escreve: “Uma lição importante surge aqui: Jonas estudou para aprender a orar, e aprendeu bem suas lições, mas ele não era um aluno que apenas decorava. Seus estudos não bloquearam sua criatividade. Ele era capaz de distinguir entre as formas e decidiu orar numa forma adequada às suas circunstâncias que ele enfrentava. As circunstâncias exigiam lamentos. Mas a oração, apesar de influenciada pelas circunstâncias, não é determinada por elas. Jonas usou a criatividade para orar e decidiu orar na forma de louvor”.
    Por isso, não é suficiente expressar nossos sentimentos na oração, como resposta a Deus: “Precisamos de um longo aprendizado de oração”. Por isso, a melhor escola para a oração é o livro dos Salmos. “Em sua oração”, Peterson continua, “Jonas demonstra ter sido um aluno aplicado na escola dos Salmos. Sua oração se origina de sua situação, mas não se reduz a ela. Sua oração o levou a um mundo muito maior que sua situação imediata”. Ele orou de maneira adequada à grandeza de Deus, que o chamara, nos oferecendo um forte contraste com a atual prática de oração. Nossa cultura nos apresenta formas de oração que são em grande parte centradas em nós mesmos. Mas a oração que é resposta ao Deus que se revela nas Escrituras é dominada pela percepção de Sua grandeza.
    2. A regra da oração
    Como Peterson enfatiza, o modelo básico de devoção é a oração diária baseada nos Salmos, sequencialmente, uma vez por mês.17 Mas precisamos destacar que a oração diária dos salmos não é uma ação isolada. Ela permanece entre outros dois fundamentos: a adoração junto com a igreja no domingo e a oração diária, que são recordações às vezes intencionais, outras vezes espontâneas, em resposta a Deus. Esses três fundamentos formam o ambiente de oração que estimulará a devoção. No diagrama sugerido por Peterson, esses fundamentos aparecem assim:
     A adoração na igreja firma nossa espiritualidade na Escritura e na vida em comunidade. Os Salmos nos levam a reaprender a linguagem da oração. E a oração recordada desdobra a oração para todos os pormenores da vida. O alvo é tornar a oração recordada incessante por meio da adoração comunitária junto com a oração dos salmos. Como Peterson escreve, “os Salmos, centrados entre Adoração e Recordação, são o lugar determinado onde habitualmente revisamos a base, o vocabulário e os ritmos da oração”. É esta dinâmica que desenvolverá nossa vida de oração. Por isso, a regra (regula) da devoção é: “Adoração Comunitária/Oração dos Salmos/Oração Recordada é a base de onde começamos e para onde voltamos – sempre”.
    3. Os cristãos e o uso dos Salmos
    Como aprendemos no Novo Testamento, Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que orou os Salmos (Hb 2.12) é o principal tema dos Salmos. “O cristão encontra nos Salmos não somente os santos, mas também a Jesus Cristo, ‘o cabeça dos santos’, com seu sofrimento e sua ressurreição. Portanto, nos Salmos, como o Salmo 22 e 69, o próprio crucificado fala”.18 Portanto, é justamente aqui que é estabelecida nossa confiança de que seremos atendidos na oração: “Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito” (Jo 15.7). Pois como Bonhoeffer escreveu: “Ao repetir as próprias palavras de Deus, começamos a orar a Ele. Não oramos com a linguagem errada e confusa de nosso coração; mas pela palavra clara e pura que Deus falou a nós por meio de Jesus Cristo, devemos falar com Deus, e Ele nos ouvirá”.19 Jesus Cristo ensinou aos seus discípulos que os Salmos proclamam seu nascimento, vida, morte e ressurreição (Lc 24.44). Por outro lado, uma vez que o Filho é “Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, os Salmos são dirigidos a ele, assim como ao Pai e ao Espírito Santo (Jd 20-21). Portanto, Jesus Cristo é o alvo da oração dos salmos. E ao orarmos em nome e por meio da mediação de Jesus Cristo, nos unimos a ele, que vive sempre para interceder por nós (Hb 7.25).
    Portanto, Jesus Cristo é a chave que interpreta os Salmos e aquele que ora os Salmos deve buscar a Cristo como revelado no saltério. Em vez de tratar as promessas, súplicas, confissões e lamentos de forma analítica, na leitura dos Salmos aquele que ora participa das promessas, súplicas, confissões e lamentos do próprio Cristo. O foco de tal oração será, assim, alcançar uma maior comunhão com Jesus Cristo. “Lutero não sabia nada de um conhecimento da Bíblia puramente objetivo, desinteressado ou erudito. Tal conhecimento, mesmo se possível, seria apenas a letra morta que mata. O Espírito vivifica! Devemos, portanto, ‘sentir’ as palavras das Escrituras ‘no coração’. A experiência é necessária para entender a Palavra. Não é meramente para ser repetida ou conhecida, mas para ser vivida e sentida”.20 Num sermão sobre a expressão “invoquei o Senhor” (Sl 118.5), Lutero disse para congregação:
    Invocar é o que você precisa aprender. Você ouviu. Não fique aí apenas sentado ou virado de lado, levantando a cabeça e balançando-a, e roendo as suas unhas preocupado e buscando uma saída, com nada em sua mente a não ser como você se sente mal, como você está ferido, que coitado você é. Levante-se, seu tratante preguiçoso! Ajoelhe-se! Levante suas mãos e seus olhos para o céu! Use um salmo ou o pai-nosso a fim de clamar sua angústia ao Senhor.21
    As Escrituras, dessa forma, não são apenas a perfeita revelação de Deus, mas guia do cristão em suas lutas e vitórias – não apenas atos históricos passados e distantes, mas eventos vivos, aqui e agora. Deste modo, há outro fator que deve levar os cristãos a meditar e incluir os Salmos em sua oração:
    O abismo que há entre o cristianismo moderno e a espiritualidade da Bíblia pode ser visto (...) no nosso seletivo uso dos Salmos, que era o hinário do povo de Israel e da Igreja do Novo Testamento. Os Salmos não apenas refletem toda experiência humana (p. ex.: confusão, raiva, medo, ansiedade, depressão, alegria incontida), mas também nos forçam a parar de fingir que tudo esteja bem com o mundo. Os salmos de lamentação (por exemplo, os salmos 10, 13, 35 e 86) são veementes queixas diante de Deus em relação às contradições existentes entre suas promessas e a realidade pela qual o povo passa. Esses salmos raramente são usados no culto cristão hoje em dia. Contudo, esses salmos são atos de uma fé corajosa: corajosa, porque eles insistem em que temos que enfrentar o mundo como ele é, e que temos que abandonar toda ostentação infantil; mas também de fé, porque eles partem da convicção de que não existe assunto proibido, quando se trata de termos uma conversa com Deus. Reter daquela conversa com Deus qualquer coisa da experiência humana, inclusive a escuridão de uma oração não respondida e os aspectos negativos da vida, é negar a soberania de Deus sobre toda a vida. Assim, paradoxalmente, são aqueles que reprimem suas dúvidas com uma série de cânticos alegres que bem podem estar sendo incrédulos: pela recusa de crer que Deus pode cuidar de toda a raiva que eles têm. Assim, os salmos de protesto constituem uma poderosa repreensão ao que passa por fé e louvor na maioria dos grupos cristãos de hoje. O que é irônico é que a vida moderna talvez nos exponha a mais confusão e dor do que qualquer coisa do mundo do salmista; e contudo ignoramos exatamente aquelas orações que vêm de encontro a tal senso de desorientação. Não é de admirar que muito do ensino atual quanto à fé não seja diferente do ‘pensamento positivo’ dos gurus modernos da administração, conquanto vestido com uma roupagem pseudobíblica. A fé bíblica, entretanto, é exatamente o contrário.22
    Portanto, “os salmos continuam sendo um tesouro de auxílio espiritual para os cristãos. (...) Seja qual for o nosso estado de espírito, seja qual for nossa situação, as vozes antigas nos convidam a ouvi-las. Elas também já passaram por alegria, tristeza, luto, pecado, ira, confissão, perdão e outras experiências que tocam tão profundamente em nossas vidas. Elas nos chamam a aprender delas enquanto o Espírito Santo usa essas palavras para nos trazer para mais perto do Senhor”.23
    4. Colocando em prática
    Podemos nos beneficiar do que Dietrich Bonhoeffer escreveu sobre o uso dos Salmos: “Em muitas igrejas, cantam-se ou leem-se Salmos a cada domingo ou até diariamente. Essas igrejas preservaram uma riqueza imensurável, pois somente pelo uso diário penetraremos nesse livro divino de oração. Para o leitor ocasional, suas orações são pujantes demais em seus pensamentos e sua força, de modo que voltamos a procurar alimento mais digerível. Quem, no entanto, começou a orar o Saltério com seriedade e regularidade, logo dispensará as próprias orações superficiais e piedosas dizendo: ‘Elas não têm o sabor, a força, a paixão e o fogo que encontro no Saltério. São muito frias e rígidas’ (Lutero)”.24 Portanto, devemos incluir os Salmos em nossas orações diárias, permitindo que a Palavra de Deus estimule e guie nossas petições. E como uma ajuda para orar os Salmos diariamente em nossa meditação ou oração diária, oferecemos o roteiro abaixo:25
  • Dia 1: Salmos 1 a 8
  • Dia 2: Salmos 9 a 14
  • Dia 3: Salmos 15 a 18
  • Dia 4: Salmos 19 a 23
  • Dia 5: Salmos 24 a 29
  • Dia 6: Salmos 30 a 34
  • Dia 7: Salmos 35 a 37
  • Dia 8: Salmos 38 a 43
  • Dia 9: Salmos 44 a 49
  • Dia 10: Salmos 50 a 55
  • Dia 11: Salmos 56 a 61
  • Dia 12: Salmos 62 a 67
  • Dia 13: Salmos 68 a 70
  • Dia 14: Salmos 71 a 74
  • Dia 15: Salmos 75 a 78
  • Dia 16: Salmos 79 a 85
  • Dia 17: Salmos 86 a 89
  • Dia 18: Salmos 90 a 94
  • Dia 19: Salmos 95 a 101
  • Dia 20: Salmos 102 a 104
  • Dia 21: Salmos 105 e 106
  • Dia 22: Salmos 107 a 109
  • Dia 23: Salmos 110 a 115
  • Dia 24: Salmos 116 a 119.32
  • Dia 25: Salmo 119.33 a 119.104
  • Dia 26: Salmo 119.105 a 119.176
  • Dia 27: Salmos 120 a 131
  • Dia 28: Salmos 132 a 138
  • Dia 29: Salmos 139 a 143
  • Dia 30: Salmos 144 a 150
  • Pode ser de ajuda citar extratos de um ensaio sobre meditações diárias escritas por Eberhard Bethge em 1935, sob a supervisão de Bonhoeffer, para uso no seminário de pregadores (Predigerseminar) de Finkenwalde. Este oferece sugestões práticas que se aplicam ao uso dos Salmos em nossa oração e meditação diária:
    Nós recomendamos a meditação bíblica para moldar nossas orações e, ao mesmo tempo, para disciplinar nossos pensamentos. Finalmente, nós preferimos a meditação bíblica porque nos faz conscientes de nosso companheirismo com outros [irmãos] que estão meditando no mesmo texto. A Palavra da Escritura nunca deve parar de soar em nossos ouvidos, e [deve continuamente] trabalhar em nós ao longo do dia, como as palavras de alguém que você ama. E assim como você não analisa as palavras de alguém que você ama, mas aceita o que ele lhe diz, aceite a Palavra da Escritura e medita nela em seu coração, como Maria o fez. Isto é tudo. Isto é meditação. Não olhe para novas reflexões e conexões no texto, como se você estivesse preparando uma pregação. Não questione ‘como passar isto para alguém?’, mas ‘o que ele tem a dizer para mim?’ Pondere na Palavra longamente em seu coração e deixe que ela te dirija e te possua. Não é importante consumir o texto integral proposto para cada dia. Nós ficaremos, frequentemente, esperando um dia inteiro para ouvir o que ele tem a dizer. Deixe passagens incompreensíveis sossegadamente de lado, e não se apresse a ir à filologia. (…)
    Se os seus pensamentos o distraírem ore pelas pessoas e situações que lhe preocupam. Este é o lugar certo para intercessão. Neste caso, não ore em termos gerais, mas ore de forma objetiva por aquilo que lhe preocupa. Deixe a Palavra da Escritura o conduzir. Pode ser de ajuda você escrever calmamente o nome das pessoas com quem conversamos e pensamos todos os dias. A intercessão precisa de tempo se for levada a sério. Mas cuidado ao fixar um tempo designado para intercessão, para que esta não se torne uma fuga daquilo que é mais importante, a busca pela salvação de sua própria alma.
    Iniciamos a meditação com uma oração pelo Espírito Santo. Que ele clareie o nosso coração e prepare a nossa mente para a meditação e de todos aqueles que estarão meditando também. Então, nos voltamos ao texto. Ao término da meditação nós estaremos em posição de proferir uma oração de ação de graças com um coração satisfeito. (…)
    O tempo para a meditação é de manhã, antes de começar as tarefas. Meia hora é o mínimo de tempo necessário para a meditação. Observe que o pré-requisito é quietude extrema e o objetivo é não ser distraído por nada, por mais importante que seja.
    Uma atividade da comunidade cristã, infelizmente praticada muito raramente, mas bastante útil, é quando ocasionalmente duas ou mais pessoas se dispõe a meditar juntas. Mas que não tomem parte em discussões teológicas especulativas.26
    Bethge anexou esse texto a uma carta circular enviada de Finkenwalde para os pastores da Igreja Confessante (Bekennende Kirche), em 22 de maio de 1936. O ensaio foi rapidamente compartilhado entre os colegas pastores presos pelo governo nazista. Bethge contou depois em como a exigência de Bonhoeffer de que os alunos do seminário de pregadores de Zingst deveriam dedicar meia hora a cada manhã para meditação silenciosa de um texto bíblico lhes causou grandes dificuldades. Eles não sabiam como usar este tempo. Alguns iam dormir, outros preparavam sermões, outros nem sabiam o que fazer ou reclamavam que o tempo dedicado à meditação era excessivamente longo. Estas instruções tencionavam tornar claro aos seminaristas a importância da meditação e a maneira pela qual esta deveria ser feita.27
    Sandro Baggio, pastor-mentor do Projeto 242, preparou um roteiro para ajudar sua comunidade a praticar a leitura orante (lectio divina).28 Sugerimos que esse roteiro deve ser usado durante a meditação nos Salmos, na medida em que estas orações inspiradas pelo Espírito Santo são incorporadas às orações do povo de Deus:
    Lectio divina é um método de leitura-orante da Bíblia. É ler a Bíblia não tanto para acumular conhecimento, mas como uma forma de diálogo com Deus. Basicamente, a lectio divina consiste em statio (preparação), lectio (leitura), meditatio (meditação), oratio (oração), contemplatio (contemplação), discretio (discernimento), comunicatio (comunicação) e actio (ação). É preciso prática para penetrar na riqueza que a lectio divina pode trazer para sua vida espiritual. ‘Medita estas coisas e nelas sê diligente’ [1Tm 4.15].  A prática da lectio divina requer que você separe um tempo para estar a sós, num local tranquilo, sem distrações. Selecione o texto que deseja ler (de preferência, não muito longo).
    Os elementos centrais da lectio divina são:
    Ler: Atentamente, com prazer e com fome, saboreando as palavras como alimento espiritual. Leia o texto várias vezes, dando especial atenção aos versos ou palavras que lhe chamam atenção. Escute o que o texto fala com você.
    Pensar: O que esse texto significa para você? Que versos ou palavras falam mais à sua situação hoje? Como você tem vivido em relação a ele?
    Orar: Orar é responder ao chamado no profundo de seu coração para falar com Deus. Além de suas palavras, essa resposta pode ser também escrita em um diário espiritual, com gestos (ajoelhar-se) e cânticos.
    Viver: Você pode ler, pensar e orar o dia todo, mas a menos que você pratique a Palavra de Deus, não terá valido nada. É preciso colocar em prática o que Deus falou com você durante esse tempo de leitura e reflexão. Sua vida será o maior testemunho que você poderá dar.
    Nos dois textos citados acima é sugerida a meditação a sós. Mas queremos enfaticamente recomendar que o tempo de oração ao Deus Trino seja feita em comunidade – quando dois ou mais irmãos se reúnem para juntos buscar a Cristo em oração por meio da leitura dos Salmos. Pois não é natural que o cristão esteja só – a igreja, o ajuntamento dos fieis, é o corpo de Cristo, o templo de Deus, o santuário e habitação do Espírito Santo (1Co 3.16-17; 6.19; 10.16; 12.27; Ef 4.12) – e é em comunidade que o cristão irá não só aprender a orar, mas permanecerá em oração: “Regozijai-vos sempre. Orai sem cessar” (1Ts 5.16-17). 29
    Prossigamos com Bonhoffer: “Se em nossas igrejas já não oramos os Salmos, então devemos incluí-los com mais afinco em nossas meditações matutinas e vespertinas. Devemos ler vários Salmos diariamente e, de preferência, em conjunto, a fim de lermos este livro diversas vezes ao ano, penetrando nele com mais profundidade. Não deveríamos selecionar arbitrariamente alguns Salmos. Ao fazer isto, estamos desonrando o livro de orações da Bíblia, julgando saber melhor do que o próprio Deus o que devemos orar. Na igreja antiga não era incomum saber ‘o Davi todo’ de cor. Nas igrejas orientais isto era condição para o exercício eclesiástico. Jerônimo, um dos pais da igreja, conta que na sua época ouvia-se o cântico de Salmos nas lavouras e nos quintais. O Saltério marcava a vida da jovem cristandade. Mais importante do que isto, no entanto, é que Jesus Cristo morreu na cruz com a palavra dos Salmos em seus lábios. Ao esquecer-se do Saltério, a cristandade perde um tesouro inigualável. Ao recuperá-lo, será presenteada com forças jamais imaginadas”.30 Portanto, voltemos à beleza, riqueza, profundidade e amplitude dos Salmos como nosso guia da oração.
    Conclusão
    Durante sua longa trajetória, a igreja usou os Salmos para guiar a oração e a devoção. Então, por que tantas pessoas não se dedicam à oração? Porque, como nota Peterson, o poço é fundo e não temos nada para pegar a água. “Precisamos de um vaso para colocar a água. (…) Os salmos são esse vaso. Não são a oração em si, mas o vaso mais adequado (…) para a oração que já foi criado. Recusar-se a usar esse vaso de Salmos, depois de compreender sua função, é errar de propósito. Não é possível fazer um vaso de outro formato que o substitua”. Certamente já houve várias tentativas para substituir os Salmos como nosso guia da oração. Mas por que nos contentarmos com tão pouco, quando temos esse vaso maravilhoso à nossa disposição? Deste modo, que usemos os Salmos como o livro de orações da aliança. As palavras de Martinho Lutero são apropriadas como conclusão: “O nosso amado Senhor, que nos ensinou a orar o Saltério e o Pai Nosso e presenteou-nos com eles, conceda-nos, também, o Espírito da oração e da graça, para que oremos sem cessar, com disposição e seriedade de fé. Nós precisamos disso. Ele o ordenou e, portanto, o requer de nós. A ele sejam dados louvor, honra e gratidão. Amém”.

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    1William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2009), p. 465.
    2Para um resumo desse processo, cf. Eugene Peterson, em Um pastor segundo o coração de Deus (Rio de Janeiro: Textus, 2001), p. 21-40.
    3William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento, p. 484. Para uma introdução ao estudo dos Salmos, cf. Carl J. Bosma, “Discernindo as vozes nos Salmos: uma discussão de dois problemas na interpretação do Saltério”, Fides Reformata IX, Nº 2 (2004), p. 75-118 e N. H. Ridderbos and P. C. Craigie, “Psalms”, em G. W. Bromiley (ed.), The International Standard Bible Encyclopedia, v. 3 (Grand Rapids, MI: Eerdman, 1986), p. 1030-1038.
    4William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento, p. 483.
    5Cf. Carta a Marcelino sobre a Interpretação dos Salmos.
    6cf. Ambrose, Explanatio Psalmorum XII.
    7cf. Santo Agostinho, Comentário aos Salmos, 3 v. (São Paulo: Paulus, 1997).
    8cf. “Prefácio ao Livro dos Salmos 1545”, “Sumários sobre os Salmos e razões da tradução”, “Trabalhos do Frei Martinho Lutero nos Salmos apresentados aos estudantes de teologia de Wittenberg” e “Os sete Salmos de Penitência”, Martinho Lutero – Obras selecionadas, v. 8: interpretação bíblica, princípios (São Leopoldo: Sinodal & Porto Alegre: Concórdia, 2003), p. 33-37, 224-233, 331-492, 493-548.
    9João Calvino, O livro dos Salmos, v. 1 (São José dos Campos: Fiel, 2009), p. 26-27.
    10Lewis Bayly, A prática da piedade (São Paulo: PES, 2010), p. 225-226.
    11Eugene Peterson, Uma longa obediência na mesma direção (São Paulo: Cultura Cristã, 2005), p. 150.
    12Ambrósio, De officiis ministrorum I, 20, 88: PL 16, 50, em Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina.
    13Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos (Curitiba: Encontrão, 1995), p. 14-15.
    14Para toda essa seção, cf. Eugene Peterson, A vocação espiritual do pastor (São Paulo: Mundo Cristão, 2006), p. 75-110.
    15Para mais informações sobre o método de estudos bíblicos conhecido como crítica da forma (Formgeschichte), e em como ela foi aplicada aos estudos dos salmos, cf. William S. LaSor, David A. Hubbard e Frederic W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento, p. 467-478 e Derek Kidner, Salmos: introdução e comentário, v. 1 (São Paulo: Vida Nova, 1992), p. 18-29.
    16Raymond B. Dillard & Tremper Longman III, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2005), p. 207, 217.
    17Para esta seção e o gráfico empregado, cf. Eugene Peterson, A vocação espiritual do pastor, p. 96-109.
    18Paul Althaus, A teologia de Martinho Lutero (Canoas: Ulbra, 2008), p. 116.
    19Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, p. 12.
    20Timothy George, Teologia dos reformadores (São Paulo: Vida Nova, 1993), p. 86.
    21WA 31, p. 1, em Timothy George, Teologia dos reformadores, p. 87.
    22Vinoth Ramachandra, A falência dos deuses: a idolatria moderna e a missão cristã (São Paulo: ABU, 2000), p. 60-61.
    23Bill Arnold e Bryan E. Beyer, Descobrindo o Antigo Testamento: uma perspectiva cristã (São Paulo: Cultura Cristã, 2001), p. 312.
    24Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, p. 23.
    25“Salmos litúrgicos”, em Livro de Oração Comum: forma abreviada e atualizada com Salmos litúrgicos (Porto Alegre: Igreja Episcopal do Brasil, 1999), p. 215-406.
    26“Instructions in Daily Meditation”, em Dietrich Bonhoeffer, Meditating on the Word (Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2000), p. 21-32.
    27cf. Eberhard Bethge, Dietrich Bonhoeffer: a biography (Minneapolis: Augsburg Fortress, 2000), p. 462-465.
    28cf. Eugene Peterson, Maravilhosa Bíblia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 17-27, 97-133.
    29Para um desenvolvimento da importância da comunidade cristã, cf. especialmente Dietrich Bonhoeffer, Vida em comunhão (São Leopoldo: Sinodal, 1997).
    30Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, p. 23-24.

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