terça-feira, 18 de outubro de 2011

Barth para Leigos


O Dr. Augustus Nicodemus tem postado artigos sobre Barth, neo-ortodoxia e sua influência no meio evangélico brasileiro. Numa conversa nossa, na qual indiquei que eu tinha arquivados alguns pensamentos sobre o teólogo e seu ramo de teologia, ele achou que caberia esta inserção meio intrometida. É uma espécie de “Barth for Dummies”, ou “simplificando a neo-ortodoxia para o resto de nós”, casta não iniciada. Os puristas não devem se desesperar, pois restam ainda um ou dois posts do Nicodemus sobre o assunto, que serão devidamente colocados, na seqüência, restaurando o nível do blog.

A neo-ortodoxia é uma corrente teológica que não foi batizada com esse nome. No início ninguém a chamava assim, o que não deve deixar os correligionários tristes, porque poucas são as linhas teológicas que receberam o nome que passou para a posteridade, na ocasião do nascimento. Afinal, luteranismo só foi chamado assim após 1580 e os reformados só ficaram conhecidos com esse nome após 1600, quando os calvinistas e filipistas se apropriaram do nome, para se distinguirem dos luteranos.

Como já foi indicado em post anterior, a neo-ortodoxia começou como uma reação aparentemente saudável ao liberalismo. Teólogos, entre os quais está Karl Barth como um dos maiores nomes, se posicionavam contra o racionalismo do liberalismo e davam valor às Escrituras, voltavam a falar de Deus em termos reverentes e encorajavam uma postura piedosa de vida.

Acontece que, com o passar do tempo e na medida em que muitos escritos foram sendo produzidos a neo-ortodoxia mostrou que não estava realmente disposta a confrontar o liberalismo e, especialmente, o cientismo (termo que pode ser definido como a elevação da ciência conhecida ao ponto culminante, como aferidora de todo o saber remanescente) com as simples verdades da Palavra de Deus. Apesar das possíveis boas intenções não acataram a Bíblia com o mesmo apreço dos reformadores, que pregaram o seu caráter proposicional e objetivo: padrão de aferição de todo o pensamento e fonte suprema de nosso conhecimento religiosos e metafísico.

Nesse sentido, os neo-ortodoxos passaram a redefinir certos termos, no sentido de evitar conflitos com a ciência conhecida e com supostos postulados históricos. Ou seja – procuraram conservar terminologia cristã, em paralelo a uma aceitação ampla de uma visão humanista da história e da ciência. A forma achada de resolver esse conflito, foi criar duas esferas ou estradas de conhecimento, de registros ou de impressões da história. Uma seria chamada de HISTORIE (história, fatos brutos); a outra, mais elevada, deHEILSGESCHICHTE (história santa, sagrada ou história salvífica - estão vendo como a língua alemã é complicada?).

Desta forma, fica tudo mais fácil de resolver: se alguém pergunta - "a criação realmente aconteceu"? A resposta daquele que agora já era conhecido como neo-ortodoxo (porque se distanciava mesmo dos ortodoxos – ou seja dos fiéis reformados), possivelmente seria algo assim: “alguma coisa aconteceu, mas isso é campo da ciência; não é relevante para o nosso meditar e caminhada em direção a Deus – isso é HISTORIE; o que estamos interessados é em HEILSGESCHICHTE e é isso que temos na Bíblia – como essas questões impressionaram e afetaram o autor – ou autores”. Na realidade, para o neo-ortodoxo a integridade e ausência de erro do texto também não é algo relevante; é fruto de uma visão antiquada e ultrapassada dos escritos sagrados.

Semelhantemente, perguntando alguém: "a ressurreição realmente aconteceu?" O neo-ortodoxo, provavelmente não consideraria essa uma questão que devesse merecer preocupação; em sua visão ela não é relevante; os registros bíblicos sãoHEILSGESCHICHTE e se a ressurreição aconteceu ou não, foi assim que ela impressionou os primeiros cristãos e aqueles que registraram os reflexos religiosos dessa experiência – qualquer que tenha sido, realmente, ela. Isso quer dizer que o importante, não é o aspectoHISTORIE da ressurreição, mas o que esse conceito representa para você, como ele lhe move ou o comove a ser uma melhor pessoa e a ter mais solidariedade humana em sua existência.

Criando esses dois mundos, resolveram uma série de conflitos. Teólogos não precisavam mais se preocupar com as alegações da ciência conhecida (note que eu chamo de ciência conhecida, porque ela vai se metamorfoseando em algo desejavelmente mais veraz a cada nova descoberta que se faz), mesmo quando essas alegações entram em choque com a Bíblia. Teólogos passaram a ser intelectuais respeitáveis, em vez de simplesmente oradores de discursos chatos e ultrapassados, sempre concentrados em um mesmo tema – "o que dizem as Escrituras"?

Só tem um probleminha com isso tudo. A Bíblia, e a realidade do mundo criado pelo Deus soberano, desconhecem essa divisão artificial criada pelos neo-ortodoxos. Somos impressionados, sim, pelos fatos da história (HISTORIE), pois é nela que Deus desenvolve a sua providência. Deus é um Deus que interage com a história. Suas ações acontecem no tempo e no espaço. A vinda de Cristo realmente aconteceu, da forma como está descrita, e isso é um evento HISTORIE tanto como HEILSGESCHICHTE, pois esses dois aspectos convergem e se sobrepõem.

Paulo, ao substanciar a ressurreição (1 Co 15, entre outros textos) não dá qualquer indicação de que está preocupado apenas com o reflexo religioso ou com o caráter "supra-histórico" desse evento, qualquer que este tenha sido. Não! Ele trata a ressurreição como algo que aconteceu mesmo e foi testemunhado por inúmeras pessoas, muitas das quais ainda viviam quando escreveu (para dar ainda maior credibilidade). Paulo não estava preocupado apenas no reflexo religioso de uma mensagem intangível historicamente, mas "arrazoava" objetivamente com os seus ouvintes, transmitindo fatos proposicionais de verdades históricas de valor eterno.

Na prática qual o perigo da neo-ortodoxia, para a igreja cristã? Mesmo que tenham enfatizado uma vida devocional mais intensa, "puxaram o tapete" dos reformadores que haviam resgatado a objetividade das Escrituras; embarcaram a teologia cristã em um subjetivismo que praticamente pavimentou o caminho para qualquer tipo de idéias. Partindo de Barth, que era mais "ortodoxo" que os demais, a escalada foi descendente em amplos degraus: Bultmann, Tillich e outros foram se aproximando cada vez mais do velho liberalismo.

Um exemplo recente: A revista Ultimato, em seu No. 261 (na realidade, já faz alguns anos), traz um artigo sobre ciência e a Bíblia por um conhecido presbiteriano, professor de um dos seminários. A impressão extraída da leitura daquele artigo é a de que ele reflete bem a teologia de Barth: algo assim como – "não me importune com a história ou os fatos reais, pois podemos perder a mensagem principal transmitida nos textos bíblicos". É óbvio que o artigo não coloca a questão nessas palavras, mas essa é a impressão que tive da abordagem do autor, como se a mensagem bíblica pudesse ser divorciada das realidades históricas; como se a historicidade de Adão não fosse fato relevante à construção teológica e até à apresentação da pessoa de Cristo nos escritos paulinos.

A teologia de Barth tem tido intensa influência e penetração nos círculos intelectuais teológicos. O teólogo Franklin Fereira escreveu um excelente artigo sobre Barth na revistaFides Reformata (Volume 8/1, janeiro-junho 2003), no qual destaca algumas contribuições dele, mas tece também críticas pertinentes. A grande questão não é tanto quanto à contribuição, mas quanto será que o seu subjetivismo e abandono da visão reformada das Escrituras tem prejudicado a verdadeira fé? Quanto será que Barth aplainou o caminho e encorajou os Tillich da vida de irem "mais além", de deixarem o Sola Scriptura, de pensarem inclusivisticamente, de baixarem a guarda contra o pluralismo incipiente? Quanto Barth é responsável, não por um ressurgimento de interesse na ortodoxia e abandono do liberalismo clássico, mas pela teologia amorfa que tomou conta de mentes e setores que, antes, eram bastiões da sã teologia reformada, como é o caso de Berkower e da Free University, em Amsterdam? Quanto, de Barth é religiosidade verdadeira e quanto é puro misticismo?

Os conceitos barthianos de "historie" e "heilsgeschichte" legitimaram o divórcio da religiosidade com a realidade; isso tornou desnecessária a defesa da verdade. Disso se aproveitou o próprio liberalismo, tão combatido na forma antiga por Barth, para entrar pela porta dos fundos nos seminários e, por último nas igrejas, e ele está bem vivo em nosso meio.

Franklin, em uma ocasião me escreveu: "Acho que este é o problema principal em Barth. Ainda que, em alguns pontos, ele apóie a posição cristã histórica, e tenha sido piedoso, sua teologia tem fraquezas tão óbvias que não propiciaram defesa aos assaltos de Bultmann e Tillich – e olha que Barth entendia que Bultmann e Tillich estavam voltando ao liberalismo! Também poderia destacar o fato de que após a II Guerra a teologia bartiana entrou em colapso no Velho Mundo".

Existem boas críticas da posição teológica de Barth e dos demais neo-ortodoxos em inglês. Um bom livro é o de Gordon Clark: "What do Presbyterians Believe - The Westminster Confession Yesterday and Today", publicado pela The Presbyterian and Reformed Publishing Co. A preocupação maior de Clark é comentar as Escrituras como única fonte, com autoridade, de conhecimento religioso (complementando a revelação natural). Ele destaca o termo "infalível", utilizado no primeiro cap. da CFW e manda bordoadas nos neo-ortodoxos, indicando como as visões de Bultmann e Barth são incompatíveis com a aceitação da Confissão de Fé de Westminster.

Exatamente por essa razão, não dá pra classificar Barth de "reformado", como fazem muitos (nem dá para se entusiasmar com a teologia de Bonhoeffer, que é igualmente neo-ortodoxo – apesar de ser sempre citado, corretamente, como um modelo de coragem na postura cristã, por sua resistência ao nazismo).

O conceito de Barth das Escrituras é tudo MENOS reformado. Veja o que ele escreveu em um dos seus trabalhos mais importantes: Church Dogmatics (Edinbugh: T. & T. Clark, 1957), Vol. 1, Sec. 2, p. 492 - "A Bíblia... em si própria não é revelação mas apenas, e esta é a sua limitação, uma testemunha da revelação". Na página 501 ele escreve: "Você não pode atribuir à própria Bíblia... a capacidade de nos revelar Deus de tal forma que pela sua presença ela nos dê uma fé sincera na Palavra de Deus contida nela". Ou seja uma afirmação freqüente e verdadeira, sobre qual seria o conceito de Barth seria a seguinte: A Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um testemunho da Palavra de Deus. Outra maneira de colocar, é que ela pode se tornar a Palavra de Deus, de acordo com a apreensão pessoal e subjetiva do leitor, mas ela, intrinsecamente, não o é. Ainda no mesmo livro (Vol. 1, seção 1, p. 123) ele escreve: "A Bíblia se torna a palavra de Deus na medida em que Deus a deixa ser sua palavra, na medida em que Deus fala através dela". Esse conceito está muito distante da teologia reformada. Perguntamos: A Bíblia é inspirada porque é poderosa em nós, ou ela é poderosa porque ela é inspirada?

Veja como um "teólogo" tupiniquim expressa a sua compreensão da neo-ortodoxia e sua simpatia por ela: "Na minha opinião, esses teólogos eram equilibrados; vejamos por exemplo a questão da inspiração bíblica: enquanto o fundamentalismo defendia que a bíblia é a palavra de Deus, porém de forma não exegética (mas sim "eixegética") e totalmente sem reflexão teológica e o liberalismo defendia que a bíblia contém a palavra de Deus, usando a história, a filosofia e até a alta crítica para desvalorizar as escrituras, alguns dos neo-ortodoxos, como Barth, trouxeram uma concepção racional sobre inspiração que não tira a autenticidade da revelação".

No entanto, como vimos pelas citações de Barth, sua visão em nada difere daqueles que afirmam que a Bíblia apenas contém a Palavra de Deus. A neo-ortodoxia, assim, dá uma volta sobre si mesma e termina legitimando o liberalismo, ou oferecendo o liberalismo como conclusão final de suas elucubrações místicas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário